Benefícios Fiscais Sobre Produtos Essenciais Podem Ajudar a Concentrar Renda?

Versão mais reduzida deste estudo foi publicada no Jornal Valor Econômico  em 08/09/2015.

Em um momento que se discute reforma do sistema do PIS e COFINS é oportuno se levantar questões que normalmente são contornadas pelos políticos. Dentre as muitas distorções do sistema tributário brasileiro, o excesso de isenções e benefícios fiscais deveria ser analisado de forma mais profunda. É necessário determinar os efeitos econômicos destes incentivos fiscais, assim como analisar a eficiência das políticas econômicas e sociais alternativas aos benefícios. O presente estudo analisa especificamente os efeitos da isenção do PIS e da COFINS sobre a cesta básica do ponto de vista distributivo e sugere uma política alternativa buscando melhorar a eficiência do sistema tributário/fiscal. Na primeira seção (I) será explorada a parte conceitual, apresentando estudos já publicados sobre o assunto. A seção (II) divulga os resultados do estudo onde se identifica o valor apropriado do benefício fiscal por faixa de renda.  Na última seção (III) iremos analisar a viabilidade de alternativas de políticas compensatórias e seus mecanismos, além de abordar a ineficiência gerada pela combinação de isenção da cesta básica e a cobrança do PIS e COFINS nas refeições fora do domicílio.

I  – OS EFEITOS DAS ISENÇÕES E BENEFÍCIOS FISCAIS SOBRE PRODUTOS ESSENCIAIS

É de conhecimento comum que os impostos indiretos, os IVAs (Imposto Sobre Valor Adicionado), são regressivos do ponto de vista da renda. De forma mais simples, o resultado da aplicação da alíquota do IVA sobre o preço de um produto irá representar uma proporção bem maior da renda de famílias de classe baixa do que a proporção da renda alcançada nas famílias de renda elevada. Assim, para cada unidade de consumo, o IVA cobrado representa um percentual maior da renda das classes mais baixas, sendo por isso considerado como instrumento concentrador de renda (regressivo).

Tradicionalmente os governos tem aplicado alíquotas reduzidas (ou isenções) sobre produtos essenciais às famílias de baixa renda como mecanismo de redução da regressividade do IVA.  Uma vez que os produtos essenciais representam parte substancial do orçamento do cidadão de baixa renda, a tributação reduzida (ou isenção) representaria uma diminuição da relação entre o IVA incidente por produto e a sua renda.

No entanto, esta conclusão é apenas uma forma de olhar o resultado de benefícios fiscais aplicados sobre produtos básicos.   Devemos lembrar que os demais cidadãos não incluídos na categoria de baixa renda também irão adquirir os produtos essenciais com o mesmo benefício fiscal. Dependendo do tamanho da classe média e alta de um país, assim como do número de produtos associados ao referido benefício fiscal, o valor que deixou de ser recolhido pelos cidadãos mais abastados pode representar parcela substancial, ou talvez a maior parte, do total do benefício fiscal concedido.

É necessário entender que os benefícios fiscais são considerados como “gastos” do governo[1]. Neste sentido, se a maior parte do “gasto” do governo (renúncia fiscal), no caso dos benefícios fiscais a produtos essenciais, é destinada as classes média e alta, então o benefício fiscal concedido sobre produtos essenciais poderá resultar até em concentração de renda.

Caso se demonstre que parte substancial da renúncia fiscal é destinada às classes média e alta, caberia argumentar que as políticas sociais compensatórias, tais como Bolsa Família, seriam mais eficientes em combater a desigualdade de renda do que a concessão de benefícios fiscais sobre produtos essenciais às classes de renda inferiores.  Neste caso, os produtos essenciais seriam tributados à mesma alíquota que os demais produtos (alíquota genérica) e a arrecadação correspondente seria utilizada para fazer políticas compensatórias.

A conclusão acima é suportada por estudos internacionais que vem sendo publicados há algum tempo. O relatório da OCDE “OECD Economic Survey – Brazil 2013”(página 30) especula e conclui também que “isenções específicas direcionadas a classes baixas, ……, aumenta a progressividade mas podem criar uma perda (linkage) significativa, uma vez que uma grande parte do gasto fiscal (renúncia fiscal) irá beneficiar famílias de alta renda.” O relatório também conclui que uma forma mais eficiente de atingir as famílias de baixa renda seria através dos programas de transferência de renda[2].

Estudo realizado pelo Escritório de Orçamento do Congresso Americano (“Effects of Adopting a VAT”[3]) também concluiu que a aplicação da alíquota genérica para os produtos essenciais combinado com a utilização das políticas compensatórias reduz a carga tributária do IVA sobre o quintilho mais pobre da população de 3,9% da renda para -0,2%.  

A Consultoria Econômica “Copenhagen Economics” produziu estudo bastante completo sobre os efeitos da aplicação de isenções e alíquotas reduzidas do VAT sobre diversos produtos e serviços, inclusive alimentos. O resultado deste estudo, publicado no site da Comissão Europeia[4], indica que mesmo sem política compensatória a utilização de uma mesma alíquota para todos os produtos (sem reduções e isenções) resultaria em uma melhoria do bem-estar do consumidor em 0,03%, equivalente a 1,3 bilhão de Euros[5]. A mesma pesquisa também conclui que eventual redução de alíquotas sobre produtos alimentícios pode gerar uma perda (vazamento) de receita que irá beneficiar famílias de alta renda.

II – A DISTRIBUIÇÃO DO GASTO TRIBUTÁRIO (RENÚNCIA FISCAL) ENTRE AS FAMÍLIAS EM DECORRÊNCIA DA ISENÇÃO DE PIS E COFINS SOBRE OS PRODUTOS DA CESTA BÁSICA.

A Lei nº 10.925/2004 instituiu isenção (alíquota zero) do PIS/COFINS sobre a importação e comercialização de diversos produtos alimentícios. A lista é bastante extensa, incluindo produtos tais como:  arroz, feijão, carne, farinha de trigo, pão, leite e seus derivados, açúcar, café e massas. Destaca-se que pela sua abrangência, a lista inclui produtos que podem ser considerados supérfluos, tais como massas e carnes importadas.

Segundo o Relatório “Análise da Arrecadação das Receitas Federais – Dezembro 2014”[6], a renúncia fiscal decorrente da isenção dos produtos da cesta básica alcançou o valor de R$ 9,331 bilhões durante o ano de 2014.

Para estimar o quanto desta renúncia fiscal foi “consumida” pelas classes mais baixas de renda utilizamos a Pesquisa de Orçamento Familiar 2008/2009 realizada pelo IBGE (POF-2008/2009). A fonte para o presente estudo foi a Tabela 1.1.14 da POF[7] que permite visualizar no detalhe as despesas (monetária e não monetária) com alimentação no domicílio por classe de renda. A lista de alimentos da tabela é bastante específica sendo possível identificar com um bom grau de precisão quais os produtos estão sujeitos a isenção do PIS/COFINS.

A tabela permite identificar, por exemplo, que famílias com renda até R$ 830,00 gastam R$ 2,78 com o consumo de massas, enquanto que as famílias com renda superior a R$ 10.375,00 gastam em média R$ 4,85. Aplicando as alíquotas do PIS/COFINS sobre a despesa com cada produto objeto da isenção, por faixa de renda, foi possível obter quanto (proporção) da renúncia fiscal foi destinada para cada classe de renda.

Existem algumas questões metodológicas no cálculo que estão detalhadas em documento em separado, mas que no nosso entender não devem causar prejuízo às conclusões aqui apresentadas. Cabe ressaltar que as faixas de renda foram corrigidas utilizando-se diversos critérios, mas o resultado aqui apresentado foi corrigido pelo IPCA e pela variação do rendimento real médio (PME). Vejamos então a distribuição da renúncia fiscal por faixas de renda.

Tabela Cesta Basica Benenficio Fiscal

As famílias que ganham até R$ 2.082 se apropriam de apenas 24,71% da renúncia fiscal. Pelo Critério Brasil de distribuição de renda, segundo o qual integram a classe média aqueles que tem rendimento superior a R$ R$ 1.814, é possível afirmar que 75,29% da renúncia fiscal é destinada às classes média e alta.  Fazendo os cálculos para rendas superiores a R$ 4.164, ainda assim, 46,57% da renúncia fiscal é apropriada pelas classes média/alta.

A perda de arrecadação para classes de renda que não necessitam do benefício fiscal é substancial e pode ser um importante recurso para políticas compensatórias. Segundo os dados do relatório sobre segurança alimentar no Brasil (2014) publicado pela FAO[8], 3,56% das pessoas no Brasil estão em situação de extrema pobreza (dado 2012) e recebem do governo um benefício mensal de R$ 77,00 (2014). Com o valor correspondente à renúncia fiscal desnecessária (R$ 7,02 bi) o benefício acima poderia ser duplicado.  Ainda segundo a FAO, um programa de grande eficácia na erradicação da fome, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), custou 3,3 bilhões de reais para o governo federal em 2012. Com metade do valor da renúncia fiscal poderia se dobrar o programa.

Estamos falando apenas da isenção do PIS/COFINS, mas os Estados também concedem isenções de ICMS sobre produtos da cesta básica o que deve gerar uma perda substancial de arrecadação tributária na forma aqui exposta.

III – MECANISMO DE RESTITUIÇÃO, DISTORÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO E CONCLUSÕES

Uma das soluções para o problema acima seria a cobrança do PIS/COFINS sobre os produtos da cesta básica (alíquota genérica – 9,25%) e o valor arrecadado seria utilizado em política social compensatória. Como verificamos acima, o resultado seria mais eficiente em reduzir a regressividade dos IVAs do que a concessão de isenções.

Na prática, porém, muitas pessoas de classe de renda baixa iriam pagar preços mais altos por alimentos e poderiam não receber os benefícios sociais do governo. No entanto, diferente de outros países, o Brasil tem desenvolvido recentemente uma “tecnologia” que pode ajudar na solução deste problema. A chamada Nota Fiscal com CPF pode permitir que o PIS/COFINS pago na compra dos produtos alimentícios seja imediatamente creditado na conta da pessoa cadastrada, ou ainda, no próprio cartão do bolsa família.  Eventuais fraudes poderiam ser combatidas pela restrição do valor do crédito por CPF. Com esta solução, a regressividade da cobrança do PIS/COFINS sobre alimentos da cesta básica poderia ser substancialmente reduzida.

Cabe ainda destacar outro ponto de ineficiência da isenção do PIS/COFINS sobre produtos da cesta básica. No atual sistema, bares e restaurantes compram os produtos isentos, mas não tomam créditos. Como consequência, os alimentos contidos nas refeições acabam sendo tributados pelo PIS/COFINS e a alimentação fora de casa fica proporcionalmente mais cara do que a realizada no domicílio. Para algumas faixas de trabalhadores, o custo das refeições fora do domicílio é um importante componente na decisão de aceitar um trabalho. Indiretamente, teríamos um aumento no preço (salário) de equilíbrio do mercado de trabalho e redução da oferta de emprego.

A eliminação das isenções e benefícios fiscais também pode resultar em redução da alíquota genérica aplicada aos demais produtos e serviços, espalhando benefícios para todos os consumidores, mas sem alcançar o efeito distributivo desejado.  Importante ainda ressaltar que o excesso de isenções e benefícios fiscais também gera um custo burocrático para empresas e fisco, visto que se gastam centenas de horas de advogados e funcionários públicos para se determinar se a empresa está ou não habilitada a usufruir determinado benefício fiscal, sem contar o custo da incerteza jurídica.

Procurar resolver as ineficiências do sistema tributário brasileiro não tem sido considerado seriamente por boa parte dos economistas e políticos brasileiros. Não é o que acontece no resto do mundo, os efeitos econômicos são levados em conta para a adoção de qualquer medida tributária. O Brasil precisa começar a encarar seriamente seu sistema tributário.

Eduardo Fleury

[1] A Receita Federal do Brasil apresenta relatório anualmente denominado de “Demonstrativo dos Gastos Governamentais Indiretos de Natureza Tributária – (Gastos Tributários) – PLOA” onde enumera os valores que deixaram de arrecadar em virtude de isenções e demais benefícios fiscais. O relatório para o ano de 2014, utiliza a seguinte definição:

“….essas desonerações irão se constituir em alternativas às ações Políticas de Governo, ações essas que têm como objetivo a promoção do desenvolvimento econômico ou social, não realizadas no orçamento e sim por intermédio do sistema tributário. Tal grupo de desonerações irá compor o que se convencionou denominar “gastos tributários”.”  (fls 7)

http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/estudotributario/BensTributarios/2014/DGT2014.pdf

[2]OECD Economic Surveys: Brazil 2013 – http://www.oecd-ilibrary.org/economics/oecd-economic-surveys-brazil-2013_eco_surveys-bra-2013-en

[3] Effects of Adopting  a VAT(1992), pag.38,39 e 40 – https://www.cbo.gov/sites/default/files/102nd-congress-1991-1992/reports/1992_02_effectsofadloptingavat.pdf

[4] “Study on Reduced VAT applied to goods and services in the Member States of the European Union” (2007) – http://ec.europa.eu/taxation_customs/resources/documents/taxation/vat/how_vat_works/rates/study_reduced_vat.pdf

[5] Idem nota 4 , páginas 14 e 15. O estudo utiliza a premissa de neutralidade fiscal-orçamentária. Assim, uma redução de alíquota ou isenção deve ser compensada por aumento da alíquota genérica, visto que a necessidade orçamentária continua sendo a mesma.

[6] Relatório Análise da Arrecadação das Receitas Federais – Dezembro 2014http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/2014/analise-mensal-dez-2014.pdf/view

 

[7] Tabela 1.1.14 – Despesas monetária e não monetária média mensal familiar, com alimentação, por classes de rendimento total e variação patrimonial mensal familiar, segundo os tipos de despesa, com indicação do número e tamanho médio das famílias, na área urbana – Brasil – período 2008-2009

[8] O ESTADO DA SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL – Um retrato multidimensional – RELATÓRIO 2014 – FAO

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